domingo, 28 de fevereiro de 2010

Intervenção de Chico Whitaker na Audiência Pública realizada na Câmara dos Deputados no dia 23 de fevereiro de 2010, pelo Grupo de Trabalho encarregado de analisar a Iniciativa Popular de Lei apresentada ao Congresso em 29 de setembro de 2009 pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE, a chamada “Lei da Ficha Limpa”.

Senhoras e senhores deputados,

Eu gostaria de abordar, nesta minha intervenção, o sentido mais profundo de nossa presença[1] aqui no dia de hoje.

Os senhores e senhoras já estão acostumados com a afluência permanente, nos corredores, salas e galerias desta Casa, de grande número de cidadãos e cidadãs, de todas as idades, reivindicando esta ou aquela decisão do Congresso. Faixas, cartazes, camisetas, abordagens corpo a corpo, do aeroporto às entradas da sede deste Poder da República, já fazem parte de sua paisagem e do seu ambiente.

Essa movimentação começou a ocorrer de forma intensa nos memoráveis tempos da Constituinte, e hoje é uma das boas expressões democráticas da luta continua pela satisfação de anseios legítimos da população brasileira, ou pelo respeito aos seus direitos, por meio de mudanças ou inovações no corpo de leis que regulam nossa vida social.

Nós, que estamos aqui no dia de hoje, também nos situamos dentro desse processo. Há pouco menos de cinco meses foi a festa de entrega de um projeto assinado por um milhão e meio de cidadãos e cidadãs. Com ele pretendemos modificar uma das Leis mais importantes de nosso ordenamento jurídico, aquela que define quem pode ou não pode se candidatar a nos representar no Parlamento e no Poder Executivo. Depois inundamos com nossas mensagens os computadores dos senhores e senhoras deputados. Hoje estamos tendo o primeiro encontro formal para abrir um diálogo direto do nosso Parlamento com a sociedade que ele representa, sobre o conteúdo dessa proposta. E pretendemos continuar mobilizados para acompanhar as reuniões deste Grupo de Trabalho e a tramitação do projeto no Plenário da Câmara e, em seguida, no Senado.

Para a boa continuidade deste diálogo é preciso no entanto chamar a atenção para uma característica especial da pressão que estamos agora fazendo. Ela é diferente da maior parte das pressões que os senhores e senhoras recebem: não estamos reivindicando a satisfação de interesses pessoais ou de determinados segmentos sociais; estamos exigindo –repito, exigindo – o aperfeiçoamento de nossa democracia.

Já fizemos este mesmo tipo de pressão há vinte anos, na Constituinte. Contávamos então com a Emenda Popular, um instrumento criado para permitir a participação popular na elaboração da nova Constituição. Uma das 122 emendas então apresentadas, apoiada por 400.000 assinaturas, propunha a extensão desse instrumento ao processo legislativo corrente em nosso Parlamento. Incorporado à Constituição como Iniciativa Popular de Lei, é o que estamos agora utilizando.

Há dez anos já aqui viemos, na mesma perspectiva de aperfeiçoamento democrático, para pleitear, com as assinaturas de um milhão de eleitores, regras que impedissem que candidatos inescrupulosos se aproveitassem das carências populares – que não são poucas no Brasil – para comprar seus votos e assim obter, ilegitimamente, sua eleição. Dessa pressão resultou uma lei – a 9840 de 99 – que abriu, desde então, a possibilidade da Justiça Eleitoral afastar da atividade política mais de setecentas pessoas sem condições éticas de exercer a representação popular.

O objetivo da proposta que hoje apresentamos, dez anos depois, é melhorar um pouco mais a qualidade ética dessa representação, dada a enorme responsabilidade dos Senadores, Deputados, Vereadores, Prefeitos, Governadores e Presidentes, frente aos desafios da construção de uma sociedade justa e igualitária no Brasil.

Esta melhoria vem se tornando cada vez mais urgente porque, em nossa República, o descrédito dos Parlamentos, do nível federal ao municipal, provocado pela atuação criminosa de certo número de seus membros, é assustador. Ou seja, os bons pagam pelos maus. Este fato não escapa a nenhum dos presentes nesta sala, e deve doer no íntimo de todos os parlamentares que aqui estão. É o mesmo tipo de injustiça que pode ocorrer também em outras áreas, como por exemplo a dos Direitos Humanos, em que hoje se discute uma proposta que visa não apagar da nossa História a triste memória do uso criminoso do poder do Estado, por maus brasileiros, nas décadas de 60 e 70, para torturar e eliminar opositores políticos.

Todos aqui têm também plena consciência de que nossa democracia padece ainda de enormes distorções e mesmo perversões: nas relações entre candidatos e eleitores – como as que estão sendo corrigidas com a lei 9840 - assim como nas relações entre Executivos e Legislativos e do Poder Público com as empresas, como comprovam situações que estamos vivendo, nestes dias, na própria Capital de República. Não é por outra razão que um dos temas mais recorrentes no debate político de nosso país é o da Reforma Política. Muitos setores sociais vêm se mobilizando para isso e o próprio Congresso Nacional vêm fazendo seguidos esforços em torno dessa Reforma mais do que prioritária. Mas a cada tentativa frustrada ou insuficiente mais aumenta o seu descrédito.

Ora, todos sabemos que a democracia é o único caminho efetivo para buscar soluções para os problemas de um país, porque permite a participação de toda a sociedade nessa busca, em vez da ilusão da onipotência de lideranças iluminadas. Sabemos também que o parlamento é uma instituição fundamental da democracia, para que essa participação e o debate sejam possíveis e frutíferos. Sendo assim, seu descrédito é extremamente perigoso para a continuidade democrática. No quadro atual, não seria exagero dizer que um aventureiro que propusesse o fechamento de nossos parlamentos poderia ser, tristemente, muito aplaudido pela grande maioria de nossos concidadãos e concidadãs.

Nossa proposta chamada da “Ficha Limpa” se insere portanto na perspectiva da Reforma Política de que precisamos, como um avanço imediatamente necessário e possível. Ela é de fato um ato de esperança do milhão e meio de brasileiros e brasileiras que a apresentaram. Eu iria mesmo mais longe. Peço-lhes licença para utilizar uma palavra pouco usada num Parlamento, que existe para que interesses conflitantes se expressem e procurem resolver, numa assembléia civilizada, pelo consenso ou pela regra da vontade majoritária, enfrentamentos que às vezes chegam a ser extremamente violentos. Eu diria então que essa proposta é um ato de amor. Amor a todos nós, a toda a sociedade, e muito especialmente a todos que vivem condições de vida inaceitáveis, e que esperam que todos os seus representantes políticos não os ignorem e atuem, por seus interesses, com a dignidade exigida pela função que exercem.

Para terminar, eu gostaria que de dizer que sabemos muito bem que nenhuma proposta apresentada a um Parlamento sai dele aprovada exatamente como entrou. Isto aconteceu com as 122 Emendas Populares apresentadas ao projeto de Constituição, acontece todos os dias com todos os projetos de autoria de parlamentares ou do Executivo. E isto aconteceu com nossa proposta de lei contra a corrupção eleitoral, que entrou na Câmara dia 10 de agosto de 1999 e com grande rapidez se chegou à aprovação de uma lei promulgada em 29 de setembro desse mesmo ano – sete semanas depois – o que naturalmente ajudou a melhorar a imagem do Congresso. Muito se discutiu, muitas modificações foram propostas e adotadas sem que entretanto se perdessem os objetivos iniciais do projeto apresentado. Nós todos aqui nesta Mesa esperamos sinceramente que o mesmo ocorra com a Lei da Ficha Limpa, que hoje inicia efetivamente seu caminhar nesta Casa, que tem a enorme responsabilidade de carregar consigo as aspirações políticas de toda a sociedade brasileira.

24/02/2010



[1] Esta intervenção foi feita por Francisco Whitaker, em nome da Comissão Brasileira Justiça e Paz, da CNBB, durante a primeira audiência pública promovida pelo Grupo de Trabalho criado pela Presidência da Câmara dos Deputados, para analisar o Projeto de Lei de Iniciativa Popular (a chamada “Lei da Ficha Limpa”). Esse projeto foi levado à Câmara pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE, com um milhão e quinhentas mil assinaturas de eleitores de todo o Brasil, em 29 de setembro de 2009. Imediatamente subscrito por 33 parlamentares, ele iniciou sua tramitação com o número PLP 518/2009, propondo a modificação da Lei Complementar 64/90 (Lei das Inelegibilidades), para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. A Audiência foi realizada com o objetivo de ouvir a sociedade civil, como autora do projeto. Apensado ao PLP 168/93 com mais nove projetos que tratam do mesmo assunto, ele deverá ser analisado pelo Grupo de Trabalho para a formulação de um substitutivo único a ser submetido ao Plenário da Câmara. Fizeram uso da palavra, nessa Audiência Pública, representantes das entidades que fazem parte do MCCE e patrocinaram a coleta de assinaturas para sua apresentação ao Congresso.

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