A demora em se obter decisões judiciais definitivas que permitam a devolução de recursos desviados não é um problema apenas do Brasil, mas a Justiça brasileira coleciona processos que jamais são concluídos. Uma certa tolerância dos tribunais em relação aos crimes econômicos e a infinidade de recursos existentes na atual lei processual, que permite a elaboração de teses jurídicas cada vez mais complexas, são algumas das explicações para que isso ocorra. No caso da corrupção - que, segundo especialistas, é o crime que, no Brasil, gera boa parte do dinheiro posteriormente lavado - a ausência de condenações é ainda mais gritante. A principal justificativa é a existência do foro privilegiado, que garante que processos contra autoridades sejam julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Para se ter uma ideia, há duas semanas a corte condenou, pela primeira vez desde a Constituição de 1988, um político por crime de corrupção, em um processo contra o deputado federal José Gerardo Oliveira de Arruda (PMDB-CE) ajuizado em 2006. O exemplo mais emblemático da demora do Supremo em julgar autoridades acusadas de corrupção e que têm direito ao foro privilegiado é o do deputado federal Paulo Maluf (PP-SP), que, segundo informações do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Estado de São Paulo, teria desviado mais de US$ 250 milhões do município de São Paulo quando ocupou o cargo de prefeito. Parte desse valor, encontrado nos Estados Unidos, Suíça, França, Luxemburgo, Inglaterra e Ilha de Jersey, já está bloqueada, mas não pode retornar ao Brasil porque o ex-prefeito não foi condenado em nenhum dos inúmeros processos penais a que responde. Todos os processos contra Paulo Maluf migraram para o Supremo em 2005, assim que ele foi eleito para ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados e conquistou, com isso, o benefício do foro privilegiado. Mas até hoje nenhum foi julgado. No Supremo, Maluf é parte em 12 ações penais e inquéritos por crimes contra o sistema financeiro nacional e a administração pública, crimes de responsabilidade, de licitação e tributário, corrupção e lavagem de dinheiro - além de uma dezena de outras ações judiciais. Diante de processos que jamais são encerrados, especialistas em lavagem de dinheiro buscam alternativas para que se consiga recuperar recursos desviados sem que seja necessário o término das ações judiciais. Uma das ideias em debate é um instrumento jurídico denominado "extinção de domínio". O mecanismo permite que o Ministério Público entre com uma segunda ação na Justiça - além do processo penal que busca a condenação do criminoso - especialmente para bloquear e retomar bens e dinheiro que tenham sido desviados. Bastaria, para isso, que fique provado que imóveis, veículos e outros bens ou o dinheiro tenha sido obtido por meios ilícitos. Ainda que seja necessária uma nova ação judicial, em geral ações de cobrança são mais céleres do que ações criminais. A possibilidade de réus em processos penais perderem seus bens antes de serem condenados está em estudo desde 2005 pelo grupo que compõe a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), que elabora um anteprojeto de lei sobre o tema. No entanto, a medida é considerada complexa e de difícil aprovação - embora já exista na Colômbia, Peru, México e Estados Unidos. Uma outra saída para recuperar recursos desviados vem de fora e está em plena aplicação na Suíça - país que vem, ao longo dos anos, tentando alterar sua imagem de paraíso fiscal com o incremento da cooperação internacional em casos de crimes transnacionais. O governo suíço se contrapôs a uma decisão da Justiça local em um dos mais rumorosos casos de corrupção no mundo e manteve o bloqueio de milhões desviados do Haiti pelo ditador Jean-Claude Duvalier, conhecido como Baby-Doc, durante seu governo, de 1971 a 1986. O bloqueio do dinheiro foi feito ainda em 1986 a pedido do Haiti, que precisava apenas garantir que havia um processo contra Baby-Doc em andamento na Justiça local - após a decisão definitiva, o dinheiro seria devolvido ao país. Mas o processo foi interrompido por uma nova ditadura no Haiti e, após 12 anos sem uma solução, o governo suíço estendeu o bloqueio politicamente e apresentou ao parlamento um projeto de lei que permite que recursos desviados de Estados falidos sejam devolvidos sem necessidade de que os processos cheguem a fim. O projeto ainda não foi aprovado. Justiça de outros países garante a volta do dinheiro Embora a estratégia do Ministério da Justiça durante o governo Lula tenha sido a de reforçar os instrumentos de cooperação internacional para recuperar recursos desviados do país e combater a lavagem de dinheiro, na prática a estratégia tem sido prejudicada pela ausência de condenações na Justiça. A consequência disso é que a recuperação do grosso do dinheiro já retomado pelo Brasil em casos de desvios ao exterior deve-se às Justiças dos países onde os valores foram encontrados. O caso que envolve o escândalo que ficou conhecido como Propinoduto é um dos exemplos mais recentes: os US$ 30 milhões desviados pelos fiscais do Rio de Janeiro e encontrados fora do país estão em vias de cruzar as fronteiras: já saíram das contas bancárias dos autores dos crimes na Suíça e foram depositados em uma conta no exterior para, em seguida, retornarem ao Brasil. Mas isso só ocorreu porque a Justiça suíça condenou seus banqueiros pela lavagem de dinheiro dos fiscais (veja quadro ao lado). No Brasil, segundo Gino Liccione, procurador da República no Rio responsável pelo caso do Propinoduto, o processo ainda aguarda o julgamento dos recursos no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os mais de 20 réus foram condenados em primeira e segunda instâncias a penas que variam de 14 a 17 anos de prisão. "O problema é que a Justiça condena, mas não conclui os processos", diz Liccione. Em outros dois escândalos de corrupção mais antigos - que envolveram a advogada Jorgina de Freitas Fernandes, conhecida como a maior fraudadora do INSS, e o juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, que desviou parte do valor destinado à construção do novo fórum trabalhista da capital paulista -, decisões de Justiças estrangeiras também foram as responsáveis pela retomada de recursos desviados ao exterior. E há exemplos ainda mais esdrúxulos: US$ 1,2 milhão desviados do município de São Paulo por Celso Pitta durante sua gestão como prefeito, de 1997 a 2001, voltaram ao país porque Nicéia Pitta, ex-mulher do prefeito, autorizou. Segundo o procurador Rodrigo de Grandis, do Ministério Público Federal em São Paulo, a conta havia sido aberta em nome dela, que serviu como testemunha de acusação no processo contra o ex-prefeito. Os acordos de cooperação ganharam a atenção do Ministério da Justiça durante a gestão de Márcio Thomaz Bastos, quando foi criado o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), vinculado à Secretaria Nacional de Justiça e dedicado exclusivamente a intermediar a recuperação de recursos no exterior em processos penais em curso na Justiça e sob responsabilidade do Ministério Público. O departamento - até há duas semanas sob o comando de Romeu Tuma Jr., secretário nacional de Justiça hoje investigado pela Polícia Federal por suspeita de envolvimento com um contrabandista chinês (leia matéria abaixo) - concentrou esforços na negociação de acordos bilaterais e multilaterais de cooperação penal internacional. Hoje há acordos com mais de 100 países, entre assinados e negociados, que permitem ou irão permitir a troca de informações, o bloqueio de bens e contas bancárias e a devolução de recursos desviados. Enquanto a Justiça não julga os casos de lavagem de dinheiro investigados e processados, os recursos desviados se mantêm bloqueados, mediante pedidos de cooperação internacional. Mas, de acordo com Boni de Moraes Soares, diretor interino do Departamento de Recuperação de Ativos, há uma clara convicção de que o problema é, na verdade, muito maior do que apenas trazer os US$ 3 bilhões hoje bloqueados de volta aos cofres do Tesouro brasileiro. "Há muito mais dinheiro desviado do país e mantido lá fora, mas que não é descoberto porque as autoridades não investigam a lavagem de dinheiro", diz. A percepção se comprova em números. Em Alagoas, Estado onde surgiu o escândalo que ficou conhecido por "esquema PC Farias", numa alusão ao então tesoureiro de campanha do ex-presidente Fernando Collor de Mello, que sofreu um processo de impeachment, renunciou ao cargo e anos mais tarde foi absolvido pelo Supremo, até hoje nunca houve investigação por lavagem de dinheiro. Na 6ª Vara Criminal da Justiça Federal em São Paulo, especializada em lavagem de dinheiro, não há, segundo o juiz titular Fausto Martin de Sanctis, um único caso envolvendo crime de corrupção atualmente. "Não há produção de estatísticas nesse campo", diz. Isso ocorre porque os casos não chegam ao Poder Judiciário, e os poucos que chegam jamais são julgados - daí a dificuldade em recuperar o dinheiro. "O Brasil tem avançado timidamente nesse campo, e isso é um sentimento corrente na sociedade", afirma o juiz. Cristine Prestes, de São Paulo |
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