quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Ficha Limpa não viola a presunção de inocência

Por Raul Lycurgo Leite*, para o Opinião e Notícia

De nada adianta o candidato bradar “Sou Candidato!”, se sua candidatura não consegue passar pelo filtro da Lei da Ficha Limpa.

A LC nº 135/2010 (Lei da Ficha Limpa) teve sua origem na iniciativa do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), que reuniu mais de 1,6 milhão de assinaturas, e sua tramitação foi catalisada pela “abertura” da “Caixa de Pandora” no governo do Distrito Federal, pela magnitude das denúncias, pela coleção de vídeos capaz de dar inveja a qualquer “blockbuster” e, principalmente, pelas pressões popular e da mídia.

O artigo 14, da Carta da República de 1988 estabeleceu as condições básicas de elegibilidade e inelegibilidade. Estabeleceu, porém, que, por meio de Lei Complementar, outras hipóteses de inelegibilidade poderiam ser estabelecidas.

Foi dentro deste contexto constitucional que a Lei Complementar nº 135/2010 foi editada, alterando a LC nº 64/1990, para estabelecer, de acordo com o art. 14, § 9º, da CF/1988, outros casos de inelegibilidade, além daqueles já constantes do art. 14, e os prazos de sua cessação, sempre a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração pública.

Com o aproximar do pleito de outubro/2010, a disputa político-eleitoral ganha mais um ingrediente – a futura decisão do Poder Judiciário sobre Lei da Ficha Limpa – que não atinge todos os candidatos uniformemente, mas que pode ter o efeito de uma verdadeira tsunami em determinadas candidaturas.

De nada adianta o candidato bradar “Sou Candidato!”, se sua candidatura não consegue passar pelo filtro da Lei da Ficha Limpa.

A atividade científica no campo da doutrina jurídica não se desenvolve dentro dos parâmetros da lógica formal, mas da lógica do razoável. O mundo jurídico é caracterizado pela convivência diuturna com problemas para cuja solução não existem fórmulas exatas, precisa e invariáveis. A ciência do jurista, por isso, é alimentada pela dialética. O que ele procura é sempre estabelecer teses, ou seja, proposições de solução para o problema analisado. A tese se defende com argumentos e tem de enfrentar contra-argumentos. Entre os argumentos de um lado e outro da análise do problema procede-se ao balanço de convencimento. Chega-se, assim, a uma síntese: os argumentos mais convincentes prevalecem, no todo ou em parte, sobre os menos convincentes. É desse confronto de argumentação que se extrai a tese final, ou seja, a síntese da solução do problema enfrentado.

Na teoria da argumentação é o esforço da persuasão e do convencimento que estruturam e servem de base às construções jurídico-decisórias e não os decibéis (dB) da voz do candidato.

Como se verá, a Lei da Ficha Limpa não é detentora de nenhuma inconstitucionalidade, podendo ser sim aplicada já nas eleições de outubro/2010.

É de sabença geral que as disposições legais se presumem constitucionais até que o Poder Judiciário pelo Controle Difuso ou Concentrado de (IN)Constitucionalidade assim declare.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu que “a lei goza, no ordenamento jurídico brasileiro, da ‘presunção de constitucionalidade, assim como os atos administrativos gozam da presunção de legalidade, que nenhum julgador pode, monocraticamente, afastar com duas ou três linhas em exame de mera delibação”.

Alguém, então, poderia perguntar: É lícito ao Magistrado deixar de aplicar a LC nº 135/2010 por outro motivo que não seja a sua inconstitucionaliade? Com a resposta o já lembrado Arnaldo Rizzado que, citando decisão do Supremo Tribunal Federal, diz que “é lícito ao juiz interpretar a lei, porém não lhe é facultado revogá-la ou deixar de aplicá-la”.

Como lembra o Saudoso Geraldo Ataliba “não é aos tribunais, não é ao Poder Judiciário que se vai pedir justiça contra a lei”. Logo, parafraseando Ataliba, não é aos tribunais, não é ao Poder Judiciário que se vai pedir justiça contra a Lei da Ficha Limpa.

Somente se admite a retirada da Lei da Ficha Limpa do mundo jurídico se houver efetivamente colisão com princípios de maior envergadura, em estrita observância ao princípio da hierarquia das normas.

Vozes de peso, dentre elas podemos citar a do Ministro Eros Roberto Grau, ecoam no sentido de que a Lei da Ficha Limpa é inconstitucional, por vilipendiar a presunção de inocência que, por imperativo Constitucional, perdura até que se tenha o trânsito em julgado final da decisão.

Data máxima venia do entendimento daqueles que defendem esta tese, creio que somente se pode assim concluir, se entendermos que o princípio da presunção de inocência é um princípio absoluto, superior aos demais.

É o próprio Ministro Eros Roberto Grau quem nos adverte, corretamente, que a Constituição e as Leis não podem ser interpretadas “em fatias”.

É desaconselhável um olhar fragmentado da Constituição e das Leis. Não se pode partilhar em fatias o texto constitucional para aferir a intencionalidade de seus autores, eis que estes subscreveram o todo, não os fragmentos da Carta Magna. Não será pinçando o artigo 5º, LVII da CF/1988 (locus do citado principio) e desprezando ou menosprezendo os demais, que chegaremos à vontade constitucional.

O que se impõe ao intérprete, em hermenêutica construtiva, é a busca de adequada conciliação, pelo critério da razoabilidade, entre os princípios legais em aparente contradição.

Nenhum artigo ou princípio constitucional é absoluto, prevalecendo, sempre, a interpretação lógico-sistemática da Constituição, conforme nos ensina Laurence H. Tribe.

A existência de colisões de normas constitucionais leva à necessidade de ponderação. A subsunção, por óbvio, não é capaz de resolver o problema, por não ser possível enquadrar o mesmo fato em normas antagônicas.

Do ponto de vista jurídico, é forçoso admitir que não há hierarquia entre os princípios constitucionais. Ou seja, todas as normas constitucionais têm igual dignidade. Em outras palavras: não há normas constitucionais meramente formais, nem hierarquia de supra ou infra-ordenação dentro da Constituição, conforme asseverou J.J. Gomes Canotilho. Existem, é certo, princípios com diferentes níveis de concretização e densidade semântica, mas, nem por isso, é correto dizer que há hierarquia normativa entre os princípios constitucionais. Com efeito, como decorrência imediata dos princípios da unidade da Constituição (Einheit der Verfassung) e da concordância prática, tem-se como inadmissível a existência de normas constitucionais antinômicas (inconstitucionais), isto é, completamente incompatíveis, conquanto possa haver, e geralmente há, tensão das normas entre si.

O princípio da presunção de inocência do artigo 5º, LVII, convive com outros, principalmente aqueles que sustentam a prisão cautelar do processo penal (Incisos XLIII, XLIV, LXV, LXVI e LXVIII, todos do artigo 5º da CF/1988).

No processo penal, onde o que está em jogo é um dos bens mais importantes de qualquer pessoa, a sua liberdade, a presunção de inocência cede espaço a outros princípios constitucionais para possibilitar a prisão cautelar, não só antes do trânsito em julgado da sentença condenatória final, mas, antes mesmo da instauração do processo penal, pois ela é cabível ainda em sede de inquérito policial, onde nem mesmo um processo existe.

E, não há porque se admitir a ponderação do princípio da presunção de inocência quando se está em jogo a liberdade de uma pessoa e não admiti-lo quando o que se tem é algo muito menor.

Seria a consagração de um verdadeiro absurdo que se entendesse que a presunção de inocência poderia ser ponderada para justificar a prisão (forma de restrição à liberdade) de uma pessoa antes mesmo da inauguração do processo penal, ainda em sede de inquérito policial, e que essa mesma presunção de inocência seria absoluta a justificar que mesmo um condenado por um colegiado de magistrados (no Brasil, em 2ª instância), não pudesse sofrer uma restrição de um direito seu que, nem de perto, afeta à sua liberadade. Nunca é demais lembrar, com Carlos Maximiliano, que o direito deve ser inteligível de forma a não consagrar absurdos.

Outro ponto que merece abordagem diz respeito à aplicação do artigo 16 da CF/1988 como forma de impedir que uma lei aprovada um ano antes do pleito seja a ele aplicada.

É muito mais fácil propugnar pela aplicação do artigo 16 da CF/1988 e dizer que a LC nº 135/2010 somente terá validade para as próximas eleições. Entretanto, ao jurista não cabe adotar o caminho mais simples, mas sim construir o caminho constitucionalmente aceito, ainda que seja o mais espinhoso.

Vejamos o que diz o artigo 16 da Charta Magna de 1988, verbis:

“Art. 16. A lei que altere o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.

A Constituição é sobejamente clara ao restringir, no seu artigo 16, que somente a “lei” que altere o “processo eleitoral” (norma instrumental). Tudo aquilo que não for “processo eleitoral”, ainda que venha a atingir direitos políticos e as eleições, não está abrangido pelo citado artigo.

Normas de direito processual eleitoral e de direito “material” eleitoral são distintas, como bem nos presenteou o Ministro Moreira Alves na ADIN nº 354/1990 com brilhante lição, verbis:

“O que é certo é que processo eleitoral é expressão que não abarca, por mais amplo que seja o sentido que se lhe dê, todo o direito eleitoral, mas apenas o conjunto de atos que estão diretamente ligados às eleições.(…)

A meu ver, e desde que processo eleitoral não se confunde com direito eleitoral, parte que é dele, deve-se entender aquela expressão não como abrangente de todas as normas que possam refletir-se direta ou indiretamente na série de atos necessários ao funcionamento das eleições por meio do sufrágio universal – o que constitui o conteúdo do direito eleitoral -, mas, sim, das normas instrumentais diretamente ligadas à eleições (…).

Note-se, porém, que são apenas as normas instrumentais relativas às eleições, e não as normas materiais que a elas de alguma forma se prendam. Se a Constituição pretendesse chegar a tanto não teria usado da expressão mais restrita que é ‘processo eleitoral’(…)”

Diferentemente seria se o legislador constitucional tivesse dito, no citado artigo 16, a lei que, de qualquer modo, afete as eleições (norma de direito material) entrará em vigor na data de sua publicação, entretanto, não se aplicará à eleição que ocorra até um ano da data da sua vigência.

Mas, o Legislador Constitucional não quis restringir. Logo, não cabe ao intérprete restringir onde o legislador não restringiu ou inserir palavras na lei.

Como acentuou Justice Anthony Kennedy, da Suprema Corte dos Estados Unidos da América: “Respeitar a Constituição tem um preço. Nós pagamos o preço, alguma frustração, alguma irritação quando vemos os direitos constitucionais terem força”.

A Lei da Ficha Limpa é uma Lei Complementar (LC nº 135/2010) e que busca fundamento constitucional no artigo 14, §9º da CF/1988, sendo certo que a restrição do artigo 16 da CF/1988 se aplica tão somente à lei ordinária que, porventura, altere o “processo eleitoral” (norma instrumental).

E, esta lei é a lei nº 9.504/1997 que trata do “processo eleitoral”, sendo que único dispositivo dela que fala em (in)elegibilidade é o parágrafo 10 do artigo 11 ao estabelecer que: “As condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade devem ser aferidas no momento da formalização do pedido de registro da candidatura, ressalvadas as alterações, fáticas ou jurídicas, supervenientes ao registro que afastem a inelegibilidade”.

Ou seja, ninguém tem direito adquirido a elegibilidade pela lei vigente em 2008 ou 2009, mas sim aquela lei vigente no momento da formalização do pedido de registro da candidatura, ou seja, a lei vigente às 19hs do dia 05/07/2010 (artigo 11 da Lei nº 9.504/1997). Não há direito adquirido algum, mas, quando muito, uma mera expectativa de direito.

O fato de a Lei nº 9.504/1997 não tratar em nenhum momento das hipóteses de (in)elegibilidade demonstra, claramente, que tais hipóteses ou estão na Constituição ou, então, em Lei Complementar, conforme estabelece o artigo 14, §9º da CF/1988 e que tais condições não fazem parte do que o Legislador Constitucional quis significar como sendo o “processo eleitoral”.

A lei ordinária que fosse aprovada, em respeito ao artigo 16 da CF/1988, jamais poderia tratar de outras hipóteses de inelegibilidade, pois estas estão diretamente presentes na CF/1988 ou, então, em Lei Complementar, in casu, a LC nº 64/1990 e a LC nº 135/2010 (artigo 14, 9º da CF/1988). Isso não era dado ao legislador ordinário fazer, salvo por meio de LC.

O STF já decidiu favoravelmente (decisão por maioria de 6 x 5 votos) ao que ora se propugna, quando da análise de ação sobre a LC nº 64, de 18/05/1990 e que foi utilizada nas eleições de outubro/1990. Vejamos a ementa do caso citado, verbis:

“EMENTA – I. Processo eleitoral: vacatio legis (CF, art. 16): inteligência. 1. Rejeição pela maioria – vencidos o relator e outros Ministros – da argüição de inconstitucionalidade do art. 27 da LC 64/90 (Lei de Inelegibilidades) em face do art. 16 da CF: prevalência da tese, já vitoriosa no TSE, de que, cuidando-se de diploma exigido pelo art. 14, par. 9., da Carta Magna, para complementar o regime constitucional de inelegibilidades, a sua vigência imediata não se pode opor o art. 16 da mesma Constituição. II. Inelegibilidade: abuso do exercício do poder (CF, art. 14, par. 9.): inteligência. (…).”

(STF, Pleno, RE 129.392, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ. 16.04.93)

Entretanto, alguns juristas dizem que a decisão data do início da década de 1990 e que a composição do tribunal hoje mudou, sustentando que isso justificaria uma mudança de posição do STF quanto ao tema.

Não se trata de fundamento jurídico-constitucional e se ignora a presunção de que os julgamentos anteriores de um Tribunal estão corretos e, ainda, se ignora que a obediência aos julgamentos anteriores é uma forma de garantir os princípios da segurança jurídica e da isonomia.

Thomas G. Hansford e James F. Springs II lecionam que é importante notar que os Magistrados da Suprema Corte não buscam simplesmente proferir decisões que retratem suas preferências pessoais sobre determinada ação pública. Eles buscam, com suas decisões (precedentes), influenciar o modo de ser e de agir da sociedade, bem como dos demais poderes.

Estudos indicam que um precedente judicial influencia comportamentos das partes privadas, as ações políticas a serem implementadas pelo Poder Executivo, o Congresso Nacional, as Assembléias Legislativas, a Câmara Legislativa, bem como as Câmaras de Vereadores.

O conhecido Juiz da Suprema Corte Norte-Americana, Justice Marshall, dizia que: “a doutrina do precedente (stare decisis) é importante não apenas pelo fato de as pessoas confiarem nas decisões do Judiciário para estruturarem suas vidas e atividades, mas, também e principalmente, pelo fato de a obediência ao precedente ser parte da concepção do nosso direito de que o Poder Judiciário é uma fonte de julgamentos impessoais e fundamentados”.

A doutrina do respeito aos casos julgados (precedentes ou “stare decidis”) é um ponto central do nosso sistema legal e o seu respeito traz uma variedade enorme de benefícios, tais como, clareza, estabilidade, segurança e justiça. Tanto Magistrados, quanto juristas e professores concordam que, por estas razões, as Cortes Superiores e a Corte Suprema devem ter parcimônia ao realizarem a revogação de uma tese já consagrada em um precedente.

O fato de o precedente igual ao que ora se analisa ter sido julgado no início da década de 1990, antes de significar uma “fraqueza”, demonstra a sua solidez. A experiência internacional aponta para o lado oposto da conclusão dos E. Juristas que defendem a “fraqueza” de precedentes “velhos”. Thomas G. Hansford e James F. Spriggs II, que se debruçaram sobre a Política dos Precedentes na Suprema Corte Norte-Americana, constataram que na medida em que os precedentes ficam “velhos”, a probabilidade de serem reformados ou revistos é reduzida significativamente.

Quanto à alegação de que a composição do STF mudou e que por este motivo há grandes possibilidades de a decisão da década de 1990 não ser respeitada, há de se dito que a Constituição não é um espelho onde se possa ver apenas a imagem da visão do próprio intérprete ou o reflexo que o intérprete tem do humor da sociedade. A decisão do Tribunal reflete a posição da instituição e não “pessoal” de quem quer que seja.

A sociedade não pode partir do princípio de que a mudança da composição de um Tribunal gera a (grande) possibilidade de mudança nos precedentes. Se assim for, estará instaurada a insegurança jurídica, um princípio consagrado na CF/1988 (artigos 5º e 6º).

Esta tese, defendida por poucos, vai de encontro aos princípios vetores que justificaram a aprovação das Súmulas Vinculantes, das Súmulas impeditivas de recurso e do “respeito” aos precedentes da Corte Suprema e dos Tribunais Superiores pelos inferiores. A prevalecer esta tese, o princípio da segurança jurídica estará sempre na berlinda quando a composição de um Tribunal for modificada, não se sabendo como, onde e quando haverá a guinada de 180º e se adotará o “voto banana-boat”, na feliz expressão cunhada pelo Ministro Humberto Gomes de Barros, do Superior Tribunal de Justiça.

Bem analisada a matéria, pode-se concluir que a Lei da Ficha Limpa não viola a presunção de inocência que nunca foi um princípio absoluto, nem no direito penal/criminal que seria mais grave e onde está em risco a liberdade da pessoa humana. Nem muito menos deve a LC nº 135/2010 sofrer as restrições da “anualidade” do artigo 16 da CF/1988, pois a restrição toca apenas ao direito instrumental e as condições de (in)elegibilidade estão previstas no próprio artigo 14 da CF/1988 ou em lei complementar, conforme o artigo 14, §9º da CF/1988, não sendo norma que afete o direito instrumental (“processo eleitoral”).

*Raul Lycurgo Leite é procurador federal, mestre em Direito Internacional pela American University (Washington, DC – EUA).


(Envolverde/Opinião e Notícia )

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