Ué, mas a corrupção não ia acabar?
A pergunta pode parecer ingênua, mas era essa a impressão que tínhamos desde a época de Collor. Pela primeira vez na história, a mobilização popular afastou do poder um presidente corrupto - sinal dos tempos! O Brasil estava mudando; devagar, certamente, mas estava mudando. O governo FHC deixou a impressão de ter sido menos corrupto que a média. Parecia fazer sentido: o poder popular, crescente desde o fim do regime dos generais, vinha aos poucos enquadrando os maus políticos e diminuindo a corrupção. Mas eis que Lula assume, e tudo parece andar para trás: a corrupção explode, a reação popular é quase nula, os escândalos se sucedem em uma espiral sem fim. A absolvição de Renan Calheiros nem me causou surpresa. Já não me atrevo a protestar, só queria entender o que está acontecendo.
Haverá quem diga que as coisas sempre foram assim. Mas a impressão que eu tenho é de que as coisas nem sempre foram assim. Já não tivemos um presidente que cometeu suicídio? Diga-se de Vargas o que se disser, só quem possui alto senso de honorabilidade é capaz de tal ato - haja visto a alta taxa de suicídios entre os japoneses! O que sempre ouvimos dizer foi que a corrupção era a conseqüência de uma classe política voltada para seus interesses particulares - somos um povo honrado governado por ladrões, estampou uma longínqua manchete da Tribuna da Imprensa na época da crise que levou Vargas ao suicídio. Enfim, era isso: a elite é malvada, o povo é bom, urge tirar a elite do poder e aumentar a influência política das camadas humildes. Mas não é precisamente isso o que vem acontecendo, ainda que de forma bem gradual? Afinal, onde foi que erramos?
Sem ter uma resposta pronta, deixo minha mente vagar de volta ao passado, à procura do desvio errado por onde entramos. Posso não ser nada hoje, mas minha família já teve importância, de modo que, quando falo de política, não o faço sem conhecimento de causa. O sobrenome Bueno Brandão é muito conhecido em Minas. Há ruas com este nome, e inclusive duas cidades com este nome. Meus bisavós foram deputados, senadores, governadores de estado; de todos os postos da política, só o de presidente da república nunca foi ocupado por um parente meu. O pai de meu bisavô, inclusive, foi presidente do senado, mesmo posto hoje ocupado por Renan Calheiros. Encurtando a história, minha família se enquadra naquilo que nossos professores de escola chamam de "oligarquia", e que, dizem, é a classe responsável pela corrupção na política. Ora, mas se é verdade, então, como foi que não sobrou nada para mim? Fazendo um inventário mental de meus tios e avós, vivos e mortos, que conheci ou ouvi falar, exceto por um tio com fama de pão-duro, não encontro um único que possa ser chamado de rico. É certo que na época em que eram mandaletes eles viveram bem melhor do que vivo hoje, o que, aliás, não é nenhuma façanha, mas nada de riqueza nababesca - eles teriam, talvez, o padrão de vida de um diretor de empresa hoje em dia - e só. Bem, resta-me concluir que eles não roubavam. E se não roubavam, é possível que houvesse outros que também não roubavam. Com certeza, corruptos e honestos sempre existiram e sempre vão existir. Mas parece-me óbvio que o número de corruptos tem aumentado a olhos vistos no Brasil. Como isto se explica? Estariam os brasileiros ficando mais desonestos a cada geração?
Esta hipótese parte da premissa de que os políticos seriam uma amostra aleatória do povo em geral. Jamais o foram. Responder à questão implica levantar a relação que há entre os políticos e o eleitorado que os coloca no poder. E se há uma tendência contínua e persistente nas últimas décadas, independente, inclusive, das constituições e dos regimes de governo, é a tendência ao crescimento do eleitorado, muito maior que o crescimento vegetativo da população. Cem anos atrás, Rodrigues Alves foi eleito com menos de um milhão de votos. Lula recebeu 50 milhões. O direito de voto tem sido estendido a parcelas cada vez maiores da população, incluindo analfabetos e menores de 18 anos, e não há quem não veja nisso um progresso da democracia. Mas quantidade não é qualidade. Claramente, a degradação de nossos quadros políticos é um sinal da degradação de nosso eleitorado. Mas como pode ser? O nível de educação e informação de nosso povo não tem melhorado ao longo de todos esses anos? Menos do que seria desejável, é certo, mas não tem melhorado?
Penso que a resposta não se prende tanto ao nível de esclarecimento do eleitorado. Certamente que o eleitor sabe que fulano é corrupto, e mesmo assim vota em fulano. Por que? Como pode alguém votar conscientemente em um corrupto? Isto não faz sentido para mim, nem para você, mas é o que tem acontecido. Quem tiver paciência para pesquisar como terminou, um por um, cada escândalo de corrupção dos últimos anos, verá que, embora não se tenha notícia de condenações, os implicados foram, quase sempre, denunciados na imprensa e indiciados. Mas ao fim de poucos anos, quase todos candidataram-se novamente a cargos eletivos, e forem reeleitos. A prática mais comum é renunciar ao mandato para escapar à cassação, e depois candidatar-se novamente. E ganham. Será que nossos eleitores têm uma memória assim tão curta? Também não acho que seja bem esse o caso. Por que motivo alguém não se importaria de saber que o candidato fulano é corrupto?
Só há uma explicação. O que é um político corrupto? Alguém que desviou dinheiro público para proveito próprio. Não é igual ao batedor de carteiras que tira dinheiro meu ou seu, o corrupto tira dinheiro do erário. Mas o que é o erário, senão o montante que é recolhido da massa dos cidadãos, na forma de impostos? Somente alguém que não paga impostos é capaz de deixar de sentir-se pessoalmente lesado ao saber que alguém roubou o erário. E este é, efetivamente, o caso da maior parte dos eleitores. Os brasileiros são, em sua maioria, pobres, e os pobres estão isentos de pagar impostos diretos - o desconto em folha só incide em salários a partir de um valor que entre nós já é considerado quase de classe média. Além do que, boa parte dos pobres estão na informalidade, e de qualquer modo não pagam impostos. Não escapam, é verdade, dos impostos que estão embutidos no preço das mercadorias, mas este não vale como lição porque não é percebido. O vertiginoso crescimento do eleitorado significa, portanto, que parcelas cada vez maiores deste eleitorado estão sendo preenchidas por este eleitor não-contribuinte, que não se importa de saber que Paulo Maluf roubou um dinheiro que não saiu do bolso dele. Desta forma, não há combate à corrupção que seja efetivo, com um contingente tão grande de eleitores dispostos a absolver o candidato nas urnas. E o plenário da câmara é um retrato vivo deste tipo de eleitor.
A esta altura, o leitor deve estar julgando que tenho a proposta de restringir o direito de voto apenas aos pagadores de impostos diretos, o que viria a diminuir o eleitorado em pelo menos 3/4 de seu tamanho. Até que faria sentido: as atuais democracias do ocidente surgiram precisamente desta forma, a partir de um parlamento eleito apenas pelos cidadãos pagadores de impostos, com a finalidade única de autorizar ou vetar a criação de novos tributos pelo rei. Com o progressivo aumento das atribuições dos parlamentos, esta lógica puramente tributarista deixou de fazer sentido, e os parlamentares passaram a ser escolhidos pela totalidade dos cidadãos - o sufrágio universal, sem o qual nenhum regime dos dias de hoje é considerado uma democracia. Não sei se desaponto alguém, mas esta não é minha proposta. Seria um retrocesso. Um avanço, isto sim, seria estender a obrigação de pagar impostos à totalidade dos cidadãos, ainda que fosse uma alíquota meramente simbólica para os muito pobres. Excluído paternalisticamente da obrigação de pagar impostos, o pobre se priva, assim, da mais básica lição da cidadania, que é a relação que existe entre direito e dever: os direitos que ele reclama têm que ser pagos com os impostos que ele paga, posto que o governo não pode dar ao povo nada que não tenha dele antes tirado. Há quem considere que seria imoral cobrar impostos de quem não ganha o suficiente nem para comer. Nem todos pensam assim. Os pastores evangélicos, por exemplo, não pensam. Basta dar uma passada em frente ao novo templo de seu bairro para ter uma boa idéia de como este país seria outro, se aqui pobre também pagasse imposto...
Mas tudo isto não passa de elucubração, pois não há dúvida de que o regime atual não tem nenhuma intenção de fazer qualquer reforma profunda, seja tributária, seja eleitoral, mesmo porque não só está ciente de que depende precisamente deste tipo de eleitor que não se incomoda de saber que o candidato rouba, como tem total empatia moral e psicológica com este tipo de eleitor. Com certeza, a atual tendência ao aumento da corrupção deve continuar, pois conforme expliquei, ela não é casual, mas resulta da maior presença popular no governo. Diante deste triste quadro, vem alguém e pergunta se sinto vergonha de ser brasileiro. Novamente não sei se desaponto alguém, mas respondo curto e grosso: não sinto vergonha alguma de ser brasileiro. Não que eu ache a ladroeira normal. O caso é que a classificação de "brasileiro", assim como de "carioca", "mineiro", "branco", "cristão", "ocidental", "oriental" ou o que seja, denota um coletivo, e me escapa à compreensão alguém se sentir culpado pelo que outros fizeram. Todo coletivo é uma abstração; atributos como honesto ou safado, a meu ver, aplicam-se apenas a indivíduos concretos. Eu tenho vergonha das coisas más que já fiz, como indivíduo, e orgulho-me de tudo o que consegui fazer de proveitoso nessa vida, também como indivíduo. Já quanto a ser brasileiro, isto não me causa vergonha alguma. Nem orgulho.
Fonte: http://www.pedromundim.net
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