Luiz Flávio Borges D’Urso
As recentes revelações sobre os desmandos no Legislativo, mais do que deixar manifesto o abuso de um Poder outorgado pelo povo por inconfessáveis interesses corporativos, expõem as vísceras de um Estado cujo apego a velhas práticas do fazer política - o conchavo, o apadrinhamento, a intermediação, a barganha - resiste como um cadáver insepulto, poluindo o ar e ameaçando asfixiar a frágil democracia brasileira.
Precisamos acabar, de uma vez por todas, com a voz corrente de que o Congresso Nacional é o espelho da sociedade brasileira. Na tradução, se parlamentares conspurcam o mandato popular, o deslize é desde logo atribuído aos eleitores. "O povo está despreparado para votar", eis o falacioso argumento, contaminado de evidente má-fé.
Examinando a questão com acuidade, chega-se facilmente à conclusão de que os desvios se devem a uma parcela da representação política que teima em se apropriar da res pública, nos termos já expressos pelo jurista Raymundo Faoro em seu Os donos do Poder, ao mostrar como, na formação política do Brasil, o território público tem sido sistemática e indevidamente invadido pelo interesse privado. Trata-se de uma cultura que parte do entendimento de que o mandato não pertence ao povo, que tem o poder de eleger o representante, mas a este, que o detém por delegação popular.
Sérgio Buarque de Holanda, em seu Raízes do Brasil, já chamara a atenção para o patrimonialismo do homem público, que o impede de praticar a obrigatória distinção entre as esferas pública e privada. Infelizmente, as reflexões de Faoro, Buarque de Holanda e outros mantêm intrínseca relação com os nossos dias, embora o país tenha incorporado fortes eixos de cidadania, como a Constituição Federal, que desde 1988 constitui o farol no caminho de uma sociedade verdadeiramente democrática.
Dos recentes escândalos, um é emblemático e particularmente ilustrativo dessa distorção. Refiro-me aos execráveis atos secretos, espuriamente utilizados para ampliar e consolidar relações de compadrio, cujo objetivo último é a locupletação de um grupo de pessoas em detrimento da imensa maioria dos cidadãos. Regredimos, assim, ao conceito, lembrado por Norberto Bobbio, dos tempos em que o poder absoluto fazia tudo por baixo do pano. O filósofo lembra que as diversas faces do despotismo implicam um poder que se exerce no invisível, enquanto a república democrática - a res pública em seu sentido pleno - "exige que o poder seja visível, sendo o lugar onde se exerce o poder em toda forma de república, a assembleia dos cidadãos". Nela, as decisões devem ter publicidade, de modo que qualquer cidadão a elas possa ter acesso.
Quaisquer que sejam os desdobramentos da atual crise do parlamento brasileiro, uma conclusão é imperativa: a democracia está em risco quando alguns de seus corolários básicos - o Estado de Direito, o acesso à Justiça, à liberdade, à plena igualdade entre os cidadãos, o equilíbrio entre os Poderes da República e o estrito respeito à ética na política - sofre ameaça de colapso.
E é precisamente no respeito aos mais elementares princípios da ética que se observam com maior clareza as fissuras que podem, hoje, comprometer o edifício da democracia que tentamos construir. Ao contrário do que querem fazer crer sofistas inescrupulosos, apontar as rupturas nos princípios éticos e morais não é tentativa de solapar os entes do Estado, vale dizer o Legislativo ou o Executivo. Significa, ao contrário, clamar por um choque de ética que, certamente, terá apoio em ampla parcela de políticos que tem a compreensão da inegável relevância da democracia para edificação de uma cidadania plena.
Um choque de ética voltado para essa direção inevitavelmente deverá passar por profunda reforma política. Que seja banida qualquer tentativa de uma reforma cosmética, de fachada. Uma reforma, com o significado de avanço, deve contemplar a meta de maximizar a expressão da vontade popular, aumentar a transparência e a eficácia dos instrumentos de combate à corrupção, aperfeiçoando, dessa forma, as instituições republicanas.
Os operadores do direito - advogados, magistrados, representantes do Ministério Público, delegados de polícia -, atuando na linha de frente em defesa da democracia, abraçarão, de pronto, a causa de uma reforma política abrangente, na esteira de um urgente choque ético, inadiável para o pleno exercício da cidadania no país.
Luiz Flávio Borges D"Urso
Advogado criminalista, mestre e doutor em direito pela USP, é presidente da Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP)
Fonte: Correio Braziliense (DF)
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