Uma Constituição não cai do céu
(Coelacanthus agitat mare)
Gerivaldo Alves Neiva *
Quando defendemos a efetividade das garantias constitucionais, não podemos perder de vista que estamos garantindo e perpetuando conquistas históricas da humanidade. Portanto, mais que um dever, é uma obrigação nossa.
Então, quando vejo certos “operadores do Direito” violando essas conquistas, principalmente o direito à liberdade, ao “devido processo legal”, ao “contraditório” e à “ampla defesa”, penso que ou não estudaram a história do Direito ou sua “condição-no-mundo” não permite compreender que uma Constituição não cai do céu, mas que é o resultado de um processo histórico compreendido como momentos de conflitos, lutas e superações.
Com exemplo, vejam essas duas conquistas dos ingleses nos séculos XIII e XVII. (Antes da leitura, não esqueçam que estamos no século XXI e se hoje podemos escrever o que queremos em um blog, por exemplo, devemos isso às pessoas que lutaram e morreram para que tivéssemos este direito de liberdade de expressão.)
I – A Magna Carta
A Magna Carta (significa "Grande Carta" em latim), cujo nome completo é Magna Carta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae (Grande Carta das liberdades, ou Concórdia entre o rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei Inglês), é um documento de 1215 que limitou o poder dos monarcas da Inglaterra, especialmente o do Rei João, que o assinou, impedindo assim o exercício do poder absoluto. Resultou de desentendimentos entre João, o Papa e os barões ingleses acerca das prerrogativas do soberano. Segundo os termos da Magna Carta, João deveria renunciar a certos direitos e respeitar determinados procedimentos legais, bem como reconhecer que a vontade do rei estaria sujeita à lei. Considera-se a Magna Carta o primeiro capítulo de um longo processo histórico que levaria ao surgimento do constitucionalismo. Leia mais...
Vejam, por exemplo, estes dois dispositivos da Magna Carta:
25 - Um possuidor de bens livres não poderá ser condenado a penas pecuniárias por faltas leves, mas pelas graves, e, não obstante isso, a multa guardará proporção com o delito, sem que, em nenhum caso, o prive dos meios de subsistência. Esta disposição é aplicável, por completo, aos mercadores, aos quais se reservará alguma parte de seus bens para continuar seu comércio.
48 - Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado dos seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude de julgamento de seus Pares segundo as leis do país. Leia mais...
II - Declaração de Direitos de 1689
A Declaração de Direitos de 1689 (em inglês Bill of Rights of 1689) é um documento feito na Inglaterra pelo Parlamento que determinou, entre outras coisas, a liberdade, a vida e a propriedade privada, assegurando o poder da burguesia na Inglaterra.
Durante a Revolução Gloriosa, Guilherme de Orange chegou com seu exército à Inglaterra em 5 de novembro de 1688. O então rei Jaime II tentou resistir a invasão de Guilherme e mandou representantes para negociar com ele, mas acabou fugindo em 23 de dezembro de 1688.
Antes de Guilherme e sua mulher, Maria II, serem coroados no trono inglês, aceitaram a Declaração de Direitos feita pelo Parlamento Inglês e foram coroados monarcas conjuntos em abril de 1689. A Declaração de Direitos foi anexada em um Ato do Parlamento, atualmente conhecido como Bill of Rights, em 16 de dezembro de 1689. Leia mais...
Vejam, por exemplo, estes dispositivos da Declaração de Direitos:
1 - Que é ilegal a faculdade que se atribui à autoridade real para suspender as leis ou seu cumprimento.
2 - Que, do mesmo modo, é ilegal a faculdade que se atribui à autoridade real para dispensar as leis ou o seu cumprimento, como anteriormente se tem verificado, por meio de uma usurpação notória.
5 - Que os súditos tem direitos de apresentar petições ao Rei, sendo ilegais as prisões vexações de qualquer espécie que sofram por esta causa. Leia mais...
E olhe que nem falamos da Petição de Direitos, de 1628; da invenção do “Habeas-Corpus” pelos ingleses, em 1679; da Declaração dos Direitos da Virgínia, em 1776; da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789; da Constituição Mexicana, de 1917; da Constituição de Weimar, de 1919; das Constituições e Tribunais constitucionais do pós-guerra... (o texto integral desses documentos históricos estão disponíveis em http://www.dhnet.org.br/)
Viram, agora, que uma conjuntura política ou social da atualidade não justifica a violação das garantias constitucionais, sob pena de permitirmos o retorno do autoritarismo e provocarmos terremotos no mundo inteiro com a reviravolta dos defensores dos direitos humanos em suas sepulturas?
Ou, então, como dizia uma pichação dos anos 70 (obra do estudante Carlos Alberto Teixeira: relembre...) que foi um grande e enigmático sucesso: “Celacanto provoca maremoto” (Coelacanthus agitat mare). Assim, o desafio posto é identificar, nesta quadra da história, os celacantos e os maremotos da atualidade. Cuidem-se, portanto!
Salvador, 15 de março de 2010
* Juiz de Direito
PS. Não sabe o que é um Celacanto? Clique aqui para descobrir...
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